Bem-te-quero e malmequeres‏

As gordurinhas

É vê-las, às gordurinhas, sob uma perspectiva público-administrativa. São, maioritariamente, senhoras. De meia-idade ou já entradotas. Um ou outro senhor, também ele entradote, ou passado da meia-idade. Elas de cabelo em bola (parece que vão todas ao salão da mesma cabeleireira a partir de determinada idade), de óculos cujos aros são de massa. Eles, de costas por vezes encurvadas, de óculos (de massa?) pendurados ao pescoço pelas correntinhas de borracha.
Envergam, invariavelmente, a camisinha branca (por vezes roçada), a saia ou calça azul escura e, quando o frio chega mais perto, um pulôver. Também ele de azul sombrio.
Já os comparei, tantas vezes, a seres ausentes e vazios de sentido (com todo o respeito que me merecem!). Já me lembrei deles como formigas (estas são trabalhadoras), ou lombrigas (estas são parasitas). Umas e outras são muitas. Reproduzem-se a aparecem onde menos as esperamos. Circulam, caminham, parasitam sentadas, esgueiram-se por esquinas, desfazem-se nas sombras, passos mais ou menos silenciosos. Discretos. Como se não existissem. Como se fossem seres camuflados. Como se tivessem, eles próprios, vergonha de existir.
Entra-se num qualquer organismo público, instituição sob tutela governamental (seja regional ou nacional…) e é um escorregar preocupante nas tais gordurinhas que ali foram colocadas, especadas, em corredores, em patamares, por detrás de secretárias, antes de entrar em gabinetes, depois de sair de gabinetes, ao lado de gabinetes, ao lado de todas as portas, sob raios de sol que entram por janelas embaciadas de pó, sob o pó do tempo, sob a nossa vista (agora) protestante.
Porque só agora, e desde que se começou a falar em crise, e em cortes, e em emagrecimentos estruturais, e em troikas, e em poupanças, e em reduções, e em excessos, e em partidos políticos que ao longo do calvário democrático foram dando emprego às gordurinhas para que o voto fosse sagrado e garantido no dia da eleição, para que a taxa de emprego aumentasse, para que a tia, o sobrinho, a comadre, o amigo do primo e por aí fora em toda uma árvore genealógica que tem ramificações atá ao desconhecido, só agora, é que alguns de nós começam a abrir os olhos, e a entupir o nosso olhar, ao vermos a gordura que entope os corredores (imagine-se então os bastidores…) da realidade público-administrativa-burocrático-portuguesa.

António Cruz escreve de acordo com a antiga ortografia

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