Bem-te-quero e malmequeres‏

Os amigos

Com quase toda a certeza todos nós teremos passado por aquela lengalenga dos progenitores que regista “cuidado com os amigos que fazes”, “diz-me com quem andas dir-te-ei quem és”, “não gosto da pinta dele/a”, “olha lá, de onde é que o conheces? com quem vais? conheces os pais dela?”, “esse teu amigo não tem nada que ver contigo”.

Ou seja, uma cacofonia irritante e atormentadora que dá vontade de bater a porta e basar…com os nossos amigos injustiçados pelo juízo paternal. Certo?

Mas é próprio da idade. De qualquer idade, aliás, o fazer amigos. E filtrar as amizades que julgamos ir fazendo ao longo da vida.

Nunca fui do género “os amigos são para as ocasiões”. Nunca os incomodei a meio da noite por um bater mais irrequieto do coração. Nunca os fiz mudar a rota para me levarem ali ou trazer de acolá. Nunca lhes fui bater à porta a pedir abrigo, ou côdea, ou um copo de água. Sempre me desenvencilhei sozinho ao longo da vida e assim pretendo continuar. Apesar de assumir que jamais me ouvirão a dizer “desta água não beberei”, até porque não sei o que o amanhã me guarda.

Por isso não incorrerei no equívoco de dizer à minha filha sobre o isto ou o aquilo das suas amizades. Claro que a protegerei e alertarei se em algum momento denotar algum desvio ou me cheirar a algo que não combina com o meu olfacto. Mas ela, mais do que os seus pais, terá direito a escolher as suas amizades, a ter as suas desilusões, a bater com a cabeça na parede as vezes que forem precisas, a perceber que aquela amiga dos oito anos é a mesma que continua ao seu lado aos quarenta anos. A fazer, no final das contas, a selecção e o balanço dessa coisa chamada amizade que se faz com amigos/as.

Com a certeza porém de que, parecidinha como é com o pai, pelo seu rol de “amigos/as” irão passar os de ocasião, os da onça, os do oportunismo, os do protagonismo, os falsos, as traiçoeiras, as matreiras, as malucas, os drogados, os de outras raças, os de outros credos, as de outros países, as de outras condições sociais, os de outros ideais.

Porque a mim de todos estes tipos já me calharam. Conscientemente na maioria dos casos. Ingenuamente em alguns outros. Distraidamente alguns poucos.

AMIGOS/AS reais são os que trago há mais de vinte/trinta anos (o mais vetusto trago-o comigo há mais de quarenta). Das carteiras de escola, das brincadeiras de praia, dos casamentos e namoros (meus e deles/as), das secretárias dos empregos antigos.

Esses sim, estão sempre presentes mesmo no passar dos tempos silenciosos.

Os que fazem demasiado ruído foram apenas conhecidos que passaram sem deixar qualquer tipo de herança. Nomes e rostos difusos na efemeridade das suas intenções. Perdidos que ficaram na bruma do vazio.

António Cruz escreve de acordo com a antiga ortografia.

 


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