“Façam o que quiserem, que ponham o gado!”

Raimundo Quintal diz já não ter “paciência” para quem defende regresso do pastoreio às serras da Madeira

Depois dos graves incêndios que na passada semana fustigaram a Madeira, a opinião pública regional voltou a abordar o regresso do gado às serras como forma de atenuar os fogos florestais. Raimundo Quintal tem sido um dos visados pelas críticas, mas o geógrafo e ambientalista não se demove. Mantém tudo o que disse no passado sobre o assunto, o que não tem mais é paciência para este tipo de discussões.

Ricardo Jorge Soares
rsoares@tribunadamadeira.pt
“Já não tenho paciência para essas discussões. Por mim até podem dizer que a Terra anda à volta da Lua. Façam o que quiserem, que ponham o gado na serra!”, responde de imediato Raimundo Quintal quando questionado sobre o recente sentimento popular de que a melhor forma de combater os incêndios é fazer regressar o pastoreio às serras da Madeira. “Já disse tudo o que tinha a dizer sobre esse assunto. Abordei essa questão muitas vezes e já cheguei à conclusão que não vale a pena.”
No rescaldo dos graves incêndios que afectaram a Madeira durante a a última semana – e que têm levado muitos madeirenses a defender o regresso do gado às serras da ilha – que disse então no passado o geógrafo e conhecido ambientalista sobre o assunto? Não é necessário voltar muito atrás no tempo.
Em Fevereiro de 2015, por exemplo, Raimundo Quintal alertou para o recrudescimento de posições favoráveis à reintrodução da pastorícia nas serras madeirenses. Algo que considerou recorrente em período eleitoral. A “Festa do Mundo Rural” acabava de ser promovida pelo CDS/PP-Madeira e por um grupo de criadores de gado.
“Com a aproximação das eleições para a Assembleia Legislativa Regional ressurgiram as pressões e chantagens para que o gado ovino e caprino volte a pastar nas altas montanhas da cordilheira central da Ilha da Madeira”, escreveu o geógrafo numa rede social, ilustrando o texto com quatro fotografias. “Para quem não acredita na desertificação do maciço montanhoso central provocada por séculos de pastoreio, recomendo a observação atenta das quatro fotografias com que ilustro esta nota [no facebook]”.

Pastoreio não faz evitar ou minimizar fogos
Dias antes, dirigentes centristas e criadores de gado tinham ao Paúl da Serra para defender o regresso do pastoreio às serras, medida que apontaram como forma de controlar a vegetação e contribuir para a prevenção dos fogos florestais.
Raimundo Quintal refutou a ideia, apelou aos partidos para não cederem a pressões eleitorais. E justificou-se com números e factos históricos para garantir que “é completamente mentira que o pastoreio contribua para evitar ou minimizar fogos”.  Aliás, segundo o ambientalista, os maiores incêndios na Madeira, desde o início do século XIX, ocorreram precisamente quando as serras da ilha estavam infestadas de ovelhas, cabras e porcos”.
Quintal, reconhecido investigador na área do ordenamento do território, não tinha então dúvidas que a aposta no combate aos fogos florestais deve estar centrada na prevenção. Razão pela qual defendeu “medidas fortes e consistentes” para travar o recuo do coberto vegetal, lembrando  o trabalho feito nesse sentido pelo governador civil da Madeira entre 1846 e 1852, Silvestre José Ribeiro.
Segundo o ambientalista, Silvestre Ribeiro “tinha perfeita consciência de que na expansão do coberto florestal residia a única forma de travar a erosão, minimizar o risco de cheias e aumentar os caudais das fontes”. Daí aquilo que considerou uma “obra extraordinária em prol da floresta e do sistema ecológico global ilha”. Uma obra que pretendia evitar tragédias como as que ocorreram em Outubro de 1803, 30 de Outubro de 1815, 24 de Outubro de 1842 e 17 a 20 de Novembro de 1848.
Também em Abril do ano passado, o geógrafo lembrou que “ao contrário do que é voz corrente na Madeira” também ocorreram fogos florestais no tempo em que não só havia “gado solto pelas serras”. O exemplo foi o ano de 1919, altura em que o fogo massacrou a ilha entre 18 de Agosto e 3 de Setembro.

Minimizar as condições de propagação de fogos
O processo de retirada do gado das serras da Madeira teve início em 1994 com a criação do Parque Ecológico do Funchal. O vasto terreno tinha estado até então sujeito não só a um intenso pastoreio como a uma expansão descontrolada de eucaliptos e acácias. Em 1995 foram retiradas do local mais de 1000 ovelhas e cabras; em 1996, também na sequência da implementação do projecto, teve início o programa de reflorestação. O objectivo da Câmara Municipal do Funchal (CMF) foi recuperar as formações vegetais primitivas, reduzir a erosão, diminuir os efeitos das cheias, aumentar a infiltração das águas e reforçar as nascentes. Naturalmente, como também apontou Raimundo Quintal no ano passado, a intenção pretendia igualmente minimizar as condições de propagação de fogos.
Os objectivos da CMF, recorde-se, colidiram nesse mesmo ano de 1995 com os interesses dos criadores gado, pelo que foi celebrado um protocolo com a Cooperativa dos Criadores de Gado do Monte para a criação de 250 ovelhas numa área delimitada perto da Ribeira das Cales. Passados cerca de sete anos, os criadores de gado entregaram o terreno à Câmara do Funchal, lembrou o geógrafo.
O grande incêndio de Agosto de 2010, assinalou Raimundo Quintal, começou nas zonas de eucalipto e resultou de fogo posto, não nas áreas onde havia desejo de voltar a colocar o gado. Além disso, destacou, esse incêndio “galgou a encosta e com rajadas de 100 km por hora e assim não há quem o combata em nenhum lugar do mundo”.

Explorações mistas e mudança de mentalidades
A questão do pastoreio nas serras da Madeira fez mesmo o ambientalista aconselhar a visita de uma equipa independente às ilhas Desertas. Quintal lembrou o processo de abate de cabras que acabou sendo abandonado pelo Parque Natural e resultou “num retrocesso da recuperação da biodiversidade, com consequências visíveis no recuo da vegetação”.
O geógrafo e ambientalista disse também o ano passado que não é radicalmente contra a presença de gado na montanha, mas voltou a defender o pastoreio na zona onde começam os fogos, ou seja, na área de transição entre as habitações e a floresta de pinheiros bravos, acácias e eucaliptos.
Para Raimundo Quintal, a redução dos fogos florestais “só acontecerá quando as matas de árvores exóticas infestantes e os matagais forem limpos periodicamente ou substituídos por prados”. As vantagens seriam evidentes: existência de biomassa para ser utilizada na produção de electricidade e prados valorizados com um pastoreio sustentável de gado ovino”.
No que respeita aos prados, o geógrafo e ambientalista foi ainda mais longe. Nesses espaços vedados seria “aconselhável desenvolver núcleos de castanheiros e nogueiras” e plantar “árvores vocacionadas para a produção de frutos secos”. Estas explorações mistas, sublinhou, deviam estar sob a responsabilidade de associações de vizinhos, uma vez que tal até iria implicar uma “mudança de mentalidades”.


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2 thoughts on ““Façam o que quiserem, que ponham o gado!”

  • 31 Agosto, 2016 at 18:52
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    Este senhor [de seu nome, Raimundo Quintal] está coberto de razão. Infelizmente, as suas palavras são como ‘pérolas lançadas a porcos’…

    • 31 Agosto, 2016 at 20:24
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      Bem dito.

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