O Perigo da Ilusão Democrática

Numa entrevista de 26 de março de 2007 ao jornal italiano Corriere della Sera, José Saramago, do qual se comemora este ano o centenário do nascimento, afirmou que acreditava na possibilidade de que o fascismo, ou qualquer outra forma de totalitarismo, estivesse à espera para regressar à Europa. Não viria com as camisas negras, nem castanhas, nem com algo semelhante, mas percebia-se que o fascismo já não se escondia. Estava ali, tinha saído para a estrada, alimentava alguns partidos políticos, tinha chegado até aos media. E poderia suceder que até já estivéssemos a viver numa situação pré-fascista sem nos darmos conta disso. E que improvisamente o fascismo chegasse para governar. E nós sem perceber. Porque a fachada mantém-se. E a fachada, para Saramago, é a ilusão democrática.

No livro de Walter Laqueur, historiador judeu, referência no estudo da História Política e Social Contemporânea, Fascism, Past, Present and Future, de 1996, o autor pergunta: o que pode suceder se os regimes democratas ocidentais se demonstrarem incapazes de enfrentar os desafios que nos colocam à prova? A questão é se estamos preparados para lidar com o chamado fascismo histórico ou com os movimentos populistas e nacionalistas (alguns deles, há 20 anos até podiam ser marginais, mas hoje são relevantes) ligados ao ultranacionalismo e também ao fundamentalismo religioso –  do islâmico  ao clérico-fascismo, como existe, por exemplo, nos Estados Unidos. Estamos preparados para os neos – neofascismo, neototalitarismo,  neoexpansionismo?

A sociedade duvida dos partidos, há medos de perda de soberania face às migrações, vive-se a agitação de uma sociedade maníaco-depressiva que não se compadece com o ritmo dos homens, e as obrigações escolares e profissionais são uma competição que faz do companheiro o antagonista a vencer. A juntar a isto a aceleração da comunicação social que muitas vezes confunde, outras, dirige.  E o homem vê-se preso num ciclo dominado pelo impulso de destruir e começar, sendo cada partida apenas a precarização, porque nega o que vem antes, a história. A razão passa a ser cega, porque não sabe de onde vem, nem planeia o futuro.

A guerra da Rússia contra a Ucrânia tem vindo a revelar uma conjuntura que já se sabia existir: um panorama de desconfiança, duvida-se do que se vê, não porque se ache que o homem não tem a capacidade de ser desumano, mas porque se embarca em teorias conspiratórias que fazem com que justo e injusto percam as fronteiras. E nesta conjuntura há quem acene a soluções fáceis e a paraísos de bem estar, ignorando que estes podem, como ensina a história,  por falta de reflexão, tornar-se distopias. Obtido o poder, a primeira preocupação é criar mecanismos para mantê-lo, apoiando-se em forças económicas e controlando a comunicação. Um governo eleito pode transformar-se, assim, em início de ditadura perante a indiferença, a falta de participação e a comunicação social dominada e assoldada.

Contra as vocações autoritárias, só se pode responder com autonomia e com um estado de comunidades, com estruturas públicas que garantam a imparcialidade, com uma ética de construção. No fundo, fazer vivo um novo humanismo, unindo a questão moral à responsabilidade e justiça. Só isso poderá distanciar-nos de uma ilusão democrática, em que se vive perigosamente na fronteira do autoritarismo puro, pensando estar a viver numa comunidade de  igualdade de oportunidades. A única forma, assim, será sempre estar atento, não acreditar em toques de flauta e libertar-se da esclerose da vontade, porque o estado do mundo é sempre a imagem de quem somos. Senão, resta-nos “ir para a rua, gritar”.

Luísa Paolinelli
Docente Universitária


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