Advocacia, Deontologia e Cidadania

O termo advogado deriva do Latim, advocatu, que significava ser chamado a, para junto de.

Eram os homens eloquentes, sabedores, com uma boa oratória que conheciam as leis e sabiam

como se dirigir às autoridades do Império, na antiga Roma, para defender os gentios de injustiças

e arbitrariedades. Mais do que uma profissão, quando começou a ser considerada como tal, a advocacia era um munus publicum, uma função social de relevante importância, na administração da Respublica.

Como recompensa pelo seu bom desempenho, os advogados eram presenteados e honrados com dádivas. Eram os honorarium. Daí que quando um advogado apresenta a conta dos serviços prestados se fale de honorários. O advogado apresenta a nota de honorários e não a factura. É a merecida recompensa pela dedicação e empenho do advogado. Ao pagar os serviços prestados pelo advogado, o cliente também lhe está a dar um contributo de honra, pelo empenho, pelo esforço e pela dedicação.

Ser advogado não é, porém, tarefa fácil. Além da vocação indispensável a esta e outras profissões congéneres, ser advogado implica uma vida de verdadeira dedicação, com muito estudo, muito trabalho e, não poucas vezes, canseiras infernais, para encontrar as soluções jurídicas que vão ao encontro da resolução dos milhentos problemas com que, muitas vezes, os clientes surgem. Ser advogado implica, também, um elevado grau de idoneidade e probidade cívica e moral. Tanto assim é que os advogados têm sempre uma palavra a dizer na defesa dos direitos dos cidadãos e na luta contra as injustiças, indesejáveis aliás, mas existentes, infelizmente, num Estado dito de direito. Os advogados são um pilar essencial para a concretização do Estado de direito e na criação de uma sociedade mais justa e livre. Não é por acaso que os advogados titulares de órgãos na Ordem dos Advogados têm honras e tratamento idêntico ao de certas entidades públicas e judiciárias, como, por exemplo, Procurador-Geral da República e juízes conselheiros, entre outros.

Ao celebrar os 90 anos da sua existência, a Ordem dos Advogados não só resistiu às agruras e perseguições do Estado Novo, como também o combateu. Quem não se recorda dos julgamentos sumários por delito de opinião? Os Advogados estavam lá! Pugnavam pela liberdade de expressão e de pensamento!

Lamentavelmente, nas últimas décadas, e por diversas razões, a classe tem perdido o prestígio que sempre teve, bem merecido e justo. As condições socioeconómicas e políticas, a desjudicialização de muitos assuntos, como por exemplo os inventários, a instabilidade legislativa, a descoordenação da burocracia (quando tanto se fala em desburocratizar) a falta de juízes, procuradores e funcionários e, ainda, o aumento significativo do número de advogados, têm catapultado a classe para condições de trabalho bem mais penosas e com reflexos, por vezes, na qualidade dos serviços prestados e dos resultados expectáveis. A sociedade passou a olhar de maneira diferente para esses nobres defensores do Direito e da Justiça!

A relevância social e institucional da advocacia justifica a existência de regras deontológicas. São regras que ditam aos advogados determinados comportamentos, consubstanciando uma estreita aproximação entre o direito e a moral. Essas regras, porque dotadas de juridicidade, são imperativas, devendo os advogados estar sempre atentos ao seu estrito cumprimento, sob pena de poderem ser submetidos a sanções disciplinares e além de defraudarem os ditames da profissão.

No âmbito do seu estatuto deontológico, os advogados estão sujeitos a uma vasta panóplia de deveres para com os tribunais, órgãos de soberania de que eles fazem parte, para com os colegas, os clientes e, também, para com a comunidade em geral.

Os advogados estão também sujeitos a determinadas incompatibilidades e impedimentos, promovendo-se, assim, a dignificação da profissão e consubstanciando-se a idoneidade dos causídicos para o cabal desempenho das suas funções.

Apenas a título de exemplo, o caso dos advogados deputados (ou deputados advogados) na Madeira, são o exemplo claro do que não deve ser. Ou se é advogado e podemos sentir-nos livres para o desempenho da nossa profissão, com ética, com independência e com isenção. Ou, por outro lado, recebemos a confiança do Povo para o representar, passando a integrar o parlamento regional. Servir a dois senhores é que não! Nem pensar!

As regras deontológicas são de tal modo importantes que um dos órgãos da Ordem dos Advogados são os Conselhos de Deontologia. Inter alia, compete a estes órgãos zelar pelo cumprimento das regras deontológicas por parte dos seus pares, dando célere andamento aos processos e reportar superiormente a sua actividade. Trata-se de um órgão crucial na dignificação da profissão seja dentro da própria, seja fora dela, junto da comunidade e demais instituições. É o barómetro ideal para aferir a elevada craveira pessoal e intelectual que os advogados devem ter.

De tal forma estes órgãos são importantes que o seu presidente e respectivos membros têm de ter, pelo menos, dez anos de inscrição na Ordem dos Advogados.

Em nosso entendimento, este requisito peca por defeito já que o presidente e membros dos Conselhos de Deontologia deveriam estar acima de quaisquer suspeitas, com um registo disciplinar limpo e, ainda, sem participações que tenham dado origem à instauração de processo disciplinar. No caso de isso não suceder, deveria ser a consciência ética de cada um a ditar a sua postura perante este importante órgão da Ordem, perante a classe e, não menos importante, perante a sociedade que confia em nós e nos merece.

A cidadania decorre da vivência em sociedade. Sendo o Homem um ser social por natureza, a sua agregação na civitas implica a criação de regras, com direitos e deveres. O cidadão tem o direito e o dever de participar activamente na vida social. Trata-se de uma interacção humana, necessária e promotora do bem de todos.

Nas suas relações com os advogados os cidadãos devem pautar-se por critérios de honestidade, da transparência e da colaboração. Designadamente, os constituintes dos advogados devem prestar-lhe toda a colaboração necessária à resolução dos assuntos, devem procurar os advogados atempadamente e aconselhar-se com eles previamente à tomada de decisões importantes nas e para as suas vidas. Não menos importante, deve-se privilegiar sempre a via do diálogo para encontrara soluções sensatas e equilibradas para ambas as partes.

É também importante que os cidadãos respeitem a função do advogado, que compreendam a nobreza deste munus publicum e que não tomem iniciativas disciplinares contra os mesmos sem se assegurarem de que há forte probabilidade de lhes assistir razão.

A relação profissional entre advogado e cliente é um contrato com direitos e deveres para ambas as partes. É certo que na sua relação com o advogado, o cliente é considerado consumidor. Contudo, tal estatuto não lhe confere o direito de reclamar por tudo e por nada. É que o advogado está bem ciente de que tem mais deveres, pois além dos deveres contratuais com o cliente, está, também, obrigado ao cumprimento das apertadas regras deontológicas. Entendemos, assim, que as reclamações contra os advogados deveriam ser submetidas a um rigoroso processo de triagem e as manifestamente infundadas ser liminarmente indeferidas.

O prestígio da classe constrói-se, afinal, com a colaboração de todos: Advogados e Cidadãos.

Marcolino Félix Pereira, Advogado

Marcolino Félix Pereira, Advogado, e estagiária
Marcolino Félix Pereira,
Advogado, e estagiária

 

 


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